sábado, 6 de outubro de 2012

A bandeira de pernas para o ar

Não me lembro de um 5 de Outubro com tanta animação ou, se preferirem, com tantos incidentes. Talvez por ser o último em feriado, houve
- o hastear da bandeira ao contrário, ou, como se diz vulgarmente, de pernas para o ar, apesar de a bandeira não ter pernas,
- a perturbação da parte final do discurso do Presidente pelos gritos de uma senhora que clamava ter fome e ganhar pouco e
- a colaboração espontânea de uma cantora lírica que, no final da cerimónia, cantou o poema Firmeza de Fernando Lopes Graça.
Na situação grave que o País atravessa todos estes acontecimentos são apenas sintomas menores. Como disse (com algum cinismo) Mário Cesariny, "Que afinal o que importa não é haver gente com fome, porque assim como assim ainda há muita gente que come". Claro que não sou tão cínico como o Cesariny foi neste poema  chamado "Pastelaria", que aprendi de cor quando era estudante e é um dos meus preferidos: Haver gente com fome é realmente um problema gravíssimo, mesmo que haja muita gente a comer (e há, basta passar à hora de almoço pelas zonas de restaurantes dos centros comerciais). Quanto à cantora lírica, se o seu gesto era de protesto, não foi compreendido como tal e até foi aplaudido no final. Já o caso da bandeira ao contrário não passou de um lapso lamentável da organização, um engano entre duas pontas de uma corda, mas quem lhe quer ligar qualquer significado político está, obviamente, a ser pelo menos ilógico.

A este propósito não resisto a contar o que se passou há muitos anos com a minha mãe, que era professora do ensino primário, quando, depois de muitos anos a deambular por escolas da província, conseguiu finalmente, já perto do fim da carreira, colocação em Lisboa e foi nomeada directora de uma escola na Ajuda. Aos Domingos era norma hastear a bandeira portuguesa no mastro por cima da porta da escola. Ora num fim de semana a empregada que fazia esta operação teve o mesmo percalço que agora coube a Cavaco Silva: pôs a bandeira de pernas para o ar. Na Segunda-feira, a minha mãe deu pelo erro, mas como era ocasião de baixar a bandeira não deu muita importância ao caso, mas uma das professoras ficou escandalizada com o pouco caso que a minha mãe tinha dado ao incidente, clamando que era muito grave ter tido o símbolo da Pátria de pernas para o ar e exigindo esclarecimentos para castigar a responsável. O caso não teve, porém, qualquer seguimento. Nessa altura ninguém se lembraria de pensar que o erro tinha mais significado do que isso mesmo, um erro, um engano, sem consequências e sem significado. Como diria Cesariny

"Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra"

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