quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Reguadas

Na SIC, numa reportagem sobre educação passada hoje no noticiário das 20 h, alguém afirma (Se não me falha a memória, foi mesmo a voz off do jornalista, mas não quero afirmar o que não tenho a certeza): "As reguadas nos alunos faziam parte do dia-a-dia antes do 25 de Abril". Na mesma onda, um entrevistado diz que "os nossos pais até eram capazes de incentivar os professores a castigarem os filhos." Outro entrevistado é de opinião que, nessa época longínqua, "aprender era privilégio de poucos".

"Antes do 25 de Abril" é uma localização no tempo bastante vaga. Tanto foi "antes do 25 de Abril" o 24 de Abril, como também todo o período do Estado Novo e o anterior. Portanto não se pode dizer que a afirmação sobre as reguadas não seja verdade, mas convém esclarecer que há muito que os castigos corporais eram formalmente proibidos em Portugal. Em 1946, frequentava eu a 1.ª classe, numa escola de Lisboa, levei uma reguada por ter feito um erro no ditado. Era a norma da professora e não sei se de toda a escola, que tinha em 4 turmas as 4 classes do ensino primário. A minha mãe era professora primária (mas leccionava fora de Lisboa, por isso não era, nessa altura, a minha professora) e sabia muito bem que os castigos corporais eram proibidos, pelo que os meus pais foram à escola protestar formalmente. Nunca mais tive qualquer castigo. Os meus filhos mais velhos frequentaram a antiga instrução primária antes do 25 de Abril e nenhum deles levou reguadas ou outro castigo. Portanto, se se entender "antes do 25 de Abril" como um período prolongado que acabou em 1974, a afirmação sobre o dia-a-dia na escola incluir reguadas não é verdadeira. Haveria professores que utilizavam essa "estratégia pedagógica", mas não só era ilegal como não era habitual. Já o facto de alguns pais pedirem aos professores para castigares os filhos ("A senhora professora chegue-lhe!", diziam com alguma frequência à minha mãe.) é real.

A última afirmação sobre a aprendizagem ser um privilégio de poucos também não corresponde ao que me lembro. Não foi preciso esperar pelo 25 de Abril para o ensino ser obrigatório, embora só até à 4.ª classe (e anteriormente até à 3.ª). A frequência do secundário, quer nos liceus quer nos cursos industriais e comerciais era muito menor do que é hoje, mas não era apenas para gente rica privilegiada.

Os mitos sobre o ante-25 de Abril são numerosos e a generalização leva a ideias erradas. Não se tome isto como uma defesa do Estado Novo ou de Salazar, mas uma tentativa de repor a verdade sobre estas aspectos particulares.

1 comentário:

Sonhador Acordado disse...

Bom dia,

Também reparei nessa reportagem. Essa afirmação apareceu mesmo em rodapé. E murmurei logo que as coisas não eram bem assim.

Realmente posso testemunhar que, em toda a minha instrução primária, em grande parte antes do 25 de Abril, nunca recebi reguadas ou outro castigo corporal. Nem soube de colegas a quem isso tivesse acontecido.

Pelo contrário, durante o secundário, já nos anos 80, num outro estabelecimento, sabia-se que alguns alunos mais problemáticos recebiam castigos corporais.

E, numa outra escola frequentada pela minha esposa, já na segunda metade da década de 80, ainda eram frequentes esses castigos.

Portanto, é realmente perigoso ver o 25 de Abril como uma fronteira antes da qual aconteciam sempre certas coisas que depois não aconteceram mais. A realidade é bastante mais relativa e gradual.

Sonhador Acordado