domingo, 1 de março de 2009

Bateram-me, e então?

Perturbou-me a leitura do editorial da revista Pública de hoje, da autoria da editora Ana Gomes Ferreira. Para compreensão da minha perturbação, transcrevo o editorial antes de comentar os pontos que me causaram perplexidade e incómodo:

«Cresci numa época em que toda a gente batia nos miúdos - os pais, quando fazíamos asneiras; os professores, por tudo e por nada; os colegas, porque sim. Na minha casa, a palmada era domínio da minha mãe. Nunca vi mal nisso e ás vezes acho que ela nos deu poucas, a mim e ao meu irmão. Como uma vez em que lhe fizemos tantas cócegas, tantas, tantas, que ela caiu da cama abaixo e nunca mais sentiu cócegas e até hoje culpa-nos por isso. Outra vez foi ela que ficou com sentimentos de culpa porque lhe arreliámos a paciência e ela atirou-nos com o que tinha na mão. A seguir rimo-nos todos alarvemente e comemos uns bifes bem tenrinhos com batatas fritas. O meu pai só me bateu uma vez. Eu tinha dois meses, acordei pela uma da manhã assustada com algum sentimento mau e não parava de chorar. À vez, passearam comigo no corredor, mimaram-me durante um par de horas mas o medo não ia embora eu não me calava. O meu pai, então, voltou-me ao contrário, deu-me uma palmada no rabo, acalmei e adormeci. Hoje, é inaceitável um professor bater numa criança. Os miúdos são tão agressivos uns para os outros que foi preciso inventar um termo (bullying). E os pais fazem caretas quando ouvem histórias como as minhas (lembrei-me delas lendo a crónica de Daniel Sampaio sobre os direitos dos pais) e que, tenho a certeza, também se passaram com eles. Não vale a pena explicar o óbvio -- que isto não é o elogio da educação pelo chinelo. Mas, às vezes, quando os nossos filhos não estão bem, uma palmada ajuda, e não vejo mal nisso.»

A autora parece julgar o mundo ou pelo menos a sociedade portuguesa pela sua própria experiência. Isto revela-se em expressões como "toda a gente batia nos miúdos - os pais, quando fazíamos asneiras; os professores, por tudo e por nada; os colegas, porque sim.", "Hoje, é inaceitável um professor bater numa criança", "os pais fazem caretas quando ouvem histórias como as minhas … e que, tenho a certeza, também se passaram com eles", "Não vale a pena explicar o óbvio" e "uma palmada ajuda".

Não, minha senhora. Nem toda a gente batia nos miúdos. Já fui miúdo há muito tempo mas foram raríssimos os momentos em que me bateram: Que me lembre, apanhei uma reguada por ter feito um erro no ditado igual ao do meu colega da frente, pelo que a professora deu como provado que tinha copiado. Se visse o número de erros que os alunos do 1.º ano dão agora, a pobre professora teria um chelique. Mas o certo é que o meu pai apressou-se a ir à escola protestar e lembrar que os castigos corporais eram proibidos. Sim, para quem não saiba ou não se lembre: no Estado Novo os castigos corporais nas escolas eram formalmente proibidos, e embora em muitas essa proibição não fosse respeitada, não se pode dizer que "toda gente", neste caso todos os professores, batesse nos miúdos por tudo e por nada. A minha mãe era professora primária e tinha orgulho em nunca ter batido num aluno.

Quanto aos meus pais, também posso afirmar que nunca me bateram e também não bateram nas minhas irmãs. Por meu lado, nunca bati nos meus filhos, como agora não bato nos meus netos, e não sou único. À minha mulher, filha de pais de origem diferente e com educação diferente, também estes nunca bateram, nem "simples" palmadas. Com os meus colegas de liceu tive algumas raras lutas esporádicas nada violentas, mas o ambiente, quer na primária quer no liceu, era muito pacífico. Nunca tive notícia de que algum colega batesse noutro, a não ser em luta, mas mesmo estas lutas eram raríssimas. Sim, é felizmente verdade que hoje, é inaceitável um professor bater numa criança, mas não é só hoje, não vejo grande diferença para o que acontecia há 60 ou 50 anos. A palavra "hoje" não tem razão de ser. Apesar de inaceitável, continua a haver quem bata, mas está longe de ser a regra, agora como dantes.

Portanto, senhora jornalista, não tenha tanto a certeza que os pais que agora fazem caretas (!) tenham passado pelo mesmo que a senhora. Nem tenha tanto a certeza que os seus pais fizeram bem em lhe dar palmadas ou em acalmar o seu choro com uma "palmada no rabo". Sim, eu não fiz caretas mas fiquei perturbado com as suas histórias e felizmente não tinha passado pelo mesmo.

E não me parece nada óbvio que no seu editorial não defenda a educação pela palmada, se bem que não seja pelo chinelo. E não creio que uma palmada ajude. Que um pai perca a paciência e dê uma palmada num filho é condenável mas compreensível. Que pense que esse acto irreflectido ajude e não tenha mal já me parece transpor uma fronteira do admissível para o inadmissível.

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