Cada vez que leio qualquer coisa sobre Salazar e o período do Estado Novo, dou com exageros e mitos sobre o que se passava nesse anos. É o caso do ensaio sobre a tacanhez de Salazar, escrito por Marta Rebelo na separata «nós» do jornal i, intitulada «O homem que sabia muito bem o que queria e para onde ia não foi a muito lado». A referida crónica tem muitas coisas certas, outras discutíveis ou que reflectem a opinião da autora, mas que retratam relativamente bem a época. Há porém dois aspectos que me sinto obrigado a referir por não corresponderem à realidade, que conheço bem porque a vivi e observei como parte interessada.
O primeiro aspecto corresponde à repetição de mitos sobre a influência tentacular da ideologia do Estado Novo sobre os indivíduos e sobre as famílias:
Diz Marta Rebelo: «Nós por cá tínhamos a caneta azul da censura sempre pronta a cortar palavras excessivas ou críticas do regime.» Ora, como filho de um crítico que muito escreveu em jornais e tendo eu próprio colaborado num jornal de estudantes, conheci infelizmente de muito perto a acção da censura e posso rectificar que não se tratava de uma «caneta azul», mas sim de um lápis azul.
Neste caso a rectificação é mínima e quase ridícula. mas já não o é nas seguintes afirmações: «Tínhamos a Mocidade Portuguesa, meninos para um lado, meninas para outro, para crescermos dentro da ordem e conscientes dos valores vigentes: ‘Deus, Pátria e Família’» Ora marchei no pátio do liceu com a Mocidade Portuguesa, evidentemente separado das meninas, que até o liceu era só para rapazes, detestei a Mocidade Portuguesa, mas nunca ninguém me falou em Deus, na Pátria e em Família. Talvez os ímpetos iniciais da Mocidade Portuguesa como organização de doutrinação dos «valores vigentes» já se tivesse então perdido, mas na minha época as actividades limitavam-se a marchar e fazer algum desporto; nem a farda era obrigatória e muito poucos a usavam.
Outra frase: «E em cada casa, por cima do rádio ou depois da televisão adornada com o naperon, uma fotografia do Presidente do Concelho…» Nunca vi fotografias de Salazar em nenhuma casa particular; acho esta afirmação perfeitamente fantasiosa. É certo que não frequentava muito casas de adeptos do regime, mas em casas de famílias normais era coisa que não existia. Bem bastavam as fotos nas escolas e repartições públicas, que aí sim, a par do Presidente da República, a fotografia de Salazar era obrigatória.
Finalmente, afirmar que «tínhamos a polícia secreta, a PIDE, que afastava ajuntamentos de mais de três…» é um manifesto exagero. Não tinha a PIDE mais que fazer!
O segundo aspecto corresponde a uma falsidade científica: «António de Oliveira Salazar … conseguiu … codificar a nossa genética como povo.» «Nos dias de hoje … inauguraram uma praça com o seu nome… Não há maior prova de contaminação do nosso ADN pela tacanhez do presidente do Conselho.» Ora no tempo de Salazar não eram conhecidas técnicas de manipulação genética e os caracteres adquiridos (admitindo que Salazar transmitiu a sua tacanhez às gerações que viveram o Estado Novo) não se impregnam no ADN nem codificam a genética dos indivíduos.
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