«os bons, os maus e a maria
por Alexandre Borges, em 15.07.15
Toda a vida, só conheci três gregos: o
deprimido que se limitava a responder ”Philip Morris. Isso é da Philip
Morris” ao entusiasmo com que lhe dizia que comprar cigarros Karelia de
duvidosa sexualidade era o meu contributo para a recuperação da economia
grega, e duas gregas simpaticíssimas, uma das quais, pura e
simplesmente, uma das mulheres mais belas que alguma vez conheci (A
propósito, Maria, se estiveres a ler isto… Ah, deixa lá). O saldo é,
portanto, francamente, positivo. Mas, nesta interminável discussão sobre
a Grécia, reduziu-se tudo a um simplismo maniqueísta de fazer corar de
embaraço.
Os Gregos são os bons; os Alemães, os
maus. Os Gregos são bons porque são coitadinhos; os Alemães são maus
porque só emprestam mais dinheiro aos Gregos se estes prometerem
portar-se bem. Os Gregos são os bons porque nos deram a democracia; os
Alemães são maus porque são nazis.
Bom, é capaz de valer a pena lembrar que
os mauzões dos Alemães – e dos Holandeses, e dos Belgas, e dos
Luxemburgueses, enfim, do resto da Europa – estão, pela terceira vez, a
emprestar enormes quantidades de dinheiro à Grécia, a juros que a Grécia
nunca encontraria, por si só, no mercado. E que esses mauzões e amigos
já permitiram uma reestruturação da dívida grega. E que aceitaram os
dois pedidos de adiamento de uma prestação pedidos pelos geniais Tsipras
e Varoufakis.. E que, quando Tsipras e Varoufakis simplesmente não
pagaram, os mauzões – estranho comportamento para vilões tão infames –
rosnaram, mas continuaram disponíveis para novo empréstimo. E que,
afinal, os implacáveis alemães, andam há cinco anos nisto.
Ah, dirão: os Alemães (vamos continuar a
fingir que são só os Alemães) não andam nisto há cinco anos porque
queiram salvar os Gregos; os Alemães andam nisto há cinco anos porque
querem salvar os bancos alemães. Claro. Mas os bancos alemães têm uma
peculiaridade – peculiaridade, aliás, partilhada por todos os bancos que
conheço: não têm dinheiro; têm o dinheiro dos clientes. Quando cai um
banco – sim, PCP, desculpe dar esta notícia assim, a frio – não é o
banqueiro que se trama; é o povo que lá tenha as poupanças. Tome-se aqui
o bom e velho BES como exemplo: é a família Espírito Santo que vêem a
liderar as manifestações dos lesados do dito? Sim, amigos solidários.
Estou certo de que se fosse o meu dinheiro na Caixa que estivesse em
xeque na questão grega, era rapaz para andar um bocado mais agastado.
Serei nazi?
Para a discussão, gostamos de trazer a
Grécia que temos na cabeça. E a Grécia que temos na cabeça – vá lá
explicar-se este fenómeno psiquiátrico – é uma Grécia que inventou a
democracia e a filosofia há 2400 anos e que, por qualquer razão, os
Alemães decidiram agora linchar. Mas – notícia de última hora – a Grécia
de há 2400 anos, por mais gratidão que nos mereça, nada tem a ver com
isto. A Grécia que se deixou cair nesta trágica situação não é a
cidade-estado de Atenas com que, romanticamente, a insistimos em
confundir. É o país que só existe como hoje o conhecemos desde o século
XIX e que sempre teve dificuldades financeiras. E é, sobretudo, a Grécia
que, nos últimos 20 anos, maquilhou os números para ocultar a sua
dívida real, que atingiu défices anuais de 15%, que continuou a engordar
o número de funcionários públicos até mais de 800 mil (incluindo casos
célebres como o dos 45 jardineiros para tratar de quatro canteiros num
hospital). É a Grécia onde, apesar de haver uma economia ainda mais
pobre do que, por exemplo, a portuguesa, se praticava (e pratica) um
ordenado mínimo superior ao ordenado médio português, se trabalha menos
anos e, frequentemente, se fecha a porta quinta-feira ao fim da tarde e
se volta segunda. É a Grécia que, na sua extensa lista de profissões de
desgaste rápido a quem era permitida a reforma aos 40 e tal anos, se
encontrava, por exemplo, o perigoso métier de cabeleireiro. É a
Grécia que, apesar de todas as vilanias pedidas pelos mauzões do centro
da Europa, ainda não aceitou mexer nos seus off-shores, em fazer os
armadores pagarem impostos, em retirar os privilégios à igreja ortodoxa
ou reduzir aquele que é, percentualmente, um dos maiores orçamentos
militares da Europa.
E, no entanto, choca-nos que possa haver
quem não esteja disposto a continuar a dar a esta Grécia, de mão
beijada, milhares de milhões de euros. Choca-nos a vilania desse
sinistro FMI que insiste em fazer exigências, quando, afinal, não é mais
do que uma organização de países, a maioria dos quais – continuam as
notícias bombásticas – com condições de vida bem piores do que a Grécia.
Repugna-nos que governos democraticamente eleitos pelos seus povos
tenham de prestar contas a esses mesmos povos pelo que decidem fazer com
o dinheiro deles, porque, aparentemente, o argumento da democracia só é
válido quando se fala da – digam em coro – Grécia.
Os gregos comuns não terão culpa da
Grécia. Mas não podem, certamente, culpar os maus dos alemães pela
enorme e persistente ingenuidade, senão negligência, com que escolheram
os seus responsáveis políticos e os deixaram agir, ao longo de décadas,
enquanto seguiam, lenta e inapelavelmente, para o abismo.
Recentemente, cansados das velhas
soluções, os Gregos entregaram o governo a um pequeno partido que, pouco
antes, não recolhia mais de 300 mil votos, e que dizia que faria tudo
diferente do que os outros faziam. Por cá, mas não só, a esquerda
facilmente impressionável (levem-me ou não a mal, amigos de esquerda, a
diferença entre esquerda e direita é, frequentemente, apenas uma questão
de ingenuidade versus realismo) tratou da canonização instantânea. Não
era só Tsipras, cuja rebeldia consistia, ao que percebi, em dispensar a
gravata; era, sobretudo, Varoufakis, o homem que as mulheres queriam ter
e que os homens queriam ser; o governante que se deixava fotografar a
caminho de reuniões de mota e blusão de cabedal; o génio rico, filho de
ricos, casado com uma mulher rica, filha de ricos, que, ao que se diz,
terá inspirado Jarvis Cocker a escrever essa bela canção sobre uma grega
em Londres, estudante de escultura, que queria brincar às “pessoas
comuns”.
Pouca importava se lembrássemos que
Varoufakis já trabalhara no governo do PASOK e que, portanto, era
difícil compreender que o seu tão propalado génio não tivesse funcionado
então. O fascínio deu para meses. Deu para fazer uma super-star
política como não se via, talvez, desde a primeira corrida presidencial
de Obama.
Eis o resumo da genialidade: eleito para
bater o pé à austeridade da Europa, o Syriza passou cinco meses a pedir
adiamentos. O tempo foi passando, entre as lições de moral de
Varoufakis aos ministros das finanças a quem tinha de pedir dinheiro e
os “programas económicos” rabiscados pelo negociador em folhas do bloco
de notas do hotel. No fim, o Syriza não só não pagou, como passou a
batata quente para as mãos do povo. Que coragem, disse-se por aí. Um
governo eleito pelo povo para o representar e decidir, na hora da
decisão, lavou as mãos e disse ao povo que fizesse o que entendesse.
Tsipras e Varoufakis nunca tiveram a
menor ideia de como tirar a Grécia da situação em que está. Talvez
tenham achado que encher o peito e aparecer ao lado de Putin bastaria
para meter medo a um velho continente tão cheio de medos, traumas e
ligações perigosas. Mas a chantagem emocional não funcionou. Então,
sonharam ardentemente com um “sim” no referendo. Sim, com um “sim” –
“nai”. Durante uma semana, apavoraram o próprio país impondo um limite
diário de 60 euros por cabeça aos levantamentos de dinheiro. Com um
requinte: só mil dependências bancárias poderiam estar abertas em todo o
país. Porquê? Se cada cidadão só podia levantar 60 euros, que diferença
fazia estarem todos os bancos abertos? Uma diferença enorme: as filas
dramáticas de gregos, de todas as idades, espremendo-se contra a porta
de um dos poucos bancos abertos num raio de quilómetros. As imagens
correram mundo e, naturalmente, chocaram. Os maus dos Alemães. Os maus
dos Europeus. E, entretanto, as sondagens iam dando o “sim” a subir
porque os Gregos começavam a ter um terrível vislumbre do que seria um
futuro sem dinheiro. Se votassem “sim”, Tsipras e Varoufakis lavariam
daí mais uma vez as mãos. Era o povo que tinha escolhido a austeridade,
forçado pela vilania alemã. Apresentariam a demissão, saindo como tinham
entrado: como heróis, sem que tivessem tido de provar o que quer que
seja a quem quer que fosse.
E, no entanto, os Gregos disseram “não”.
Oxi. Não à austeridade. Não à Europa. Morremos, mas morremos de pé.
Vamos lá! E que fizeram Tsipras e Varoufakis? Varoufakis, que prometera
demitir-se se ganhasse o “sim”, demitiu-se ganhando o “não”. Diz que foi
para facilitar as negociações porque tinha ouvido dizer que lá na
Europa não gostavam dele – mas, na verdade, já tinha sido substituído há
muitas semanas por um “negociador” que, agora, o substitui como
ministro de facto. E Tsipras? Foi negociar mais austeridade, para depois voltar a casa e gritar que foi “chantageado”.
Nunca souberam o que fazer. Nunca houve
alternativa. E é melhor que deixemos rapidamente de tratar a questão
como um debate moral. Alguém pode não pagar o que deve? Pode. Mas não
espere que lhe voltem a emprestar dinheiro. Isto não é moral; é lógica
simples. E, a propósito: haverá, com certeza, muitos especuladores a
enriquecer com a compra de dívidas soberanas, mas sabem quem é que
também investe muito em dívidas soberanas? Outros estados soberanos, com
os fundos com que tentam financiar os seus sistemas de Segurança
Social.
Quanto à solidariedade, choca-nos que o
Presidente da República Portuguesa dissesse que, saindo a Grécia,
ficavam 18 países, em resposta a uma jornalista que lhe perguntava se a
Zona Euro acabaria com uma saída da Grécia. Choca-nos que o
primeiro-ministro português se demarcasse da Grécia. Mas não nos choca
que a Grécia não tivesse tido o menor pudor em dizer, consecutivamente,
que, saindo eles, Portugal seria o próximo. Não nos choca que o governo
grego arrastasse com ele os juros da dívida portuguesa em nome de nova
chantagem emocional. Mas choca-nos que o governo português faça o que
tem de fazer: preocupar-se, em primeiro lugar, com a débil situação
portuguesa. Choca-nos o alemão feio de cadeira de rodas, que é ministro
das finanças e tem cara de mau, mas admiramos o ministro das finanças
gregos, que é garboso e bem falante. E não nos chocam os seus colegas de
governo que chamam nazis por tudo e nada aos alemães, que ameaçam
invadir a Alemanha com jihadistas (?), enquanto vão fazendo os seus
negócios com Putin.
Podemos estar todos à beira de uma
história muito complicada, e as histórias muito complicadas nunca foram
contadas dizendo que, de um lado, estavam os bons e, do outro, os maus.
E, já agora, a quem possa ser mais
sensível ao argumento arqueológico, vale a pena pensar que o nosso
sistema político – aliás, toda a contemporaneidade – deve muito mais à
Revolução Francesa, arquitectada sobre os princípios definidos por
alemães como Kant, do que à longínqua democracia de Atenas, onde
mulheres, escravos e estrangeiros não podiam tomar parte. E que não é lá
muito humanista insistir em reduzir a Hitler uma cultura que nos deu
Beethoven, Bach, Goethe, Schumann, Nietzsche, Hegel, Leibniz, Husserl,
Shopenhauer, Schiller, Thomas Mann, Brecht, Murnau, Lang, Einstein e
até, vejam lá, Karl Marx.
(Mas concedo que também foi de lá que
vieram os Scorpions. E, afinal, a Maria era muito mais bonita do que
qualquer alemã que tenha conhecido em dias de minha vida).
Sem comentários:
Enviar um comentário